Como é morar em Mulhouse Alsácia

Em 2018, morei em Mulhouse, a segunda maior cidade da Alsácia, que é a menor região da França. Escrevi aqui diversos textos sobre as atrações da cidade e da região, mas nunca contei como é morar no interior da França. Nessa – que foi minha segunda experiência de morar naquele País e foi a primeira de viver no interior – vivenciei uma história de amor e ódio por essa ville française, além de muitos momentos intensos que marcarão para sempre a minha vida. E então agora contarei no detalhe como foi morar em Mulhouse, na Alsácia, interior da França!

img_9161
Mulhouse é cortada pelo canal do Reno cuja lateral tem a ciclovia EuroVelo6

Entre viver em São Paulo e Paris, não tem tanta diferença. Para quem nasceu em uma das maiores metrópoles do mundo, o grande aprendizado é outro: é morar no interior.

Uma experiência cultural rica por morar em Mulhouse, Alsácia, interior da França

Antes de contar sobre como foi viver no interior da França, gostaria de contextualizar sobre Mulhouse. Situado na fronteira tripla entre a Alemanha e a Suíça, esse destino propicia um rico contato com diversas culturas. Isso porque rapidamente podemos ir à bela Basel, repleta de museus e também acessamos a simpática Freibourg, com lindos passeios pela floresta negra. Os vilarejos do entorno nos permitem então navegar numa história muito viva, marcada por guerras, apogeus e declínios.

Área alta do Centro antigo de Basel
Área alta do Centro antigo de Basel

É justamente esse termo que designa Mulhouse: uma cidade com marcas. Ela foi destruída pelas guerras e sua população passou diversas vezes das mãos dos alemães aos franceses e dos franceses aos alemães. Consequentemente, tudo isso está gravado nos prédios que restaram de pé, na gastronomia e na língua, o alsacien.

A fachada de muitas construções do centro foi pintada para a reconstrução do pós-Guerra
A fachada de muitas construções do centro foi pintada para a reconstrução do pós-Guerra

Mulhouse: passado de riqueza e declínio

Um dia Mulhouse foi uma potência de descobertas da Química e da Engenharia. Isso porque a indústria automobilística foi efervescente com a Bugatti, a Renault e a Peugeot, como podemos constatar no museu Cité de l’automobile (Cidade do Automóvel). As fábricas de tecido distribuíram materiais para o mercado da moda de todo o mundo, como conferimos no Musée de l’Impression sur Étoffes. Contudo, as ferrovias, marcando um polo logístico importante para toda a Europa, chegaram lá antes de muitas outras localidades, como mostra a Cité du Train (Cidade do Trem).

Raridades de diversas décadas em perfeito estado de conservação
Raridades de diversas décadas em perfeito estado de conservação na Cité de l’Automobile

Ápice de Mulhouse

Condes, imperadores e reis já foram ultrapoderosos por deter áreas das redondezas de Mulhouse. Rotas de sal, vinho, especiarias, tecidos, entre outros, passaram pela região, gerando inúmeros impostos, ou seja, muito dinheiro passou por aqui.

img_9780
Na Cité du Train conhecemos a história das ferrovias francesas

Declínio de Mulhouse

Nos anos 1970, contudo, Mulhouse viu seu declínio. As fábricas de tecidos foram falindo, as de automóvel reduziram o ritmo e, com isso, nos anos 1980 e 1990, começou um período delicado de falências e desemprego. Tudo isso fez então com que essa se tornasse, na minha visão, a Detroit francesa. O que vem então depois? Criminalidade e fome, o que já fez de lá um dos lugares mais perigosos do país.

A margem do canal toda amarelinha no outono
A margem do canal toda amarelinha no outono

Recuperação de Mulhouse, Alsácia

Nos últimos 20 anos, a iniciativa pública e a privada de Mulhouse, na Alsácia, se movimentaram. As taxas de criminalidade foram reduzidas e a economia controlada. Assim, com as fábricas remanescentes, Mulhouse continuou arrecadando bastante imposto em relação ao tamanho da população. Um dos destinos desse dinheiro é hoje a infraestrutura, que não posso negar que seja muito boa. Ônibus, sistemas de aluguel bicicleta, trams e ruas impecáveis tornam, consequentemente, a rotina muito mais fácil e agradável. Entretanto, muita gente ainda utiliza o carro. Essa história toda é contada numa matéria bem interessante no The Guardian.

img_5689
Ônibus, sistemas de aluguel bicicleta, trams e ruas impecáveis tornam a rotina muito mais fácil e agradável em Mulhouse

UHA: uma universidade de grande potencial

Um outro destino desses investimentos foi a educação. Como resultado, a Université de Haute Alsace (UHA) tem um campus excelente, repleto de laboratórios, bons professores e vagas. Lá não falta então oportunidade para quem quer estudar e eu nunca tinha visto na França uma estrutura universitária como se tem nessa cidade.

img_2539
O campus Fonderie da Université de Haute Alsace

Nessa força acadêmica, a UHA levanta uma importante bandeira: a da transfrontalidade. A sede do que se está chamando de a “Universidade Europeia” é aqui. A proposta é que se incentive o intercâmbio de conhecimento e estudantes entre os países europeus, em especial, com os vizinhos Alemanha e Suíça.

Como pesquisadora convidada, eu me beneficiei de uma infra que não existe em meu país de nascimento. Consequentemente, pude trocar com outras áreas de estudos como também não se faz no Brasil. Mas me surpreendi negativamente com a qualidade da reflexão e profundidade do aluno médio. A qualidade de pensamento da média, na PUC-SP, de onde venho, é muito superior a da UHA. Tudo isso tem uma explicação: essa geração atual não interiorizou o que é uma grande crise, mesmo tendo vivido a crise de 2008, ou o que é escassez. Sabe o que é direito, mas não conhece muito os deveres nem a importância do esforço. O mesmo ocorre na Espanha, onde chama-se essa geração de “nini”: “ni estuda ni trabaja”. E, se no Brasil as pessoas fazem doutorado depois dos 30 ou 40, na França então eles são recém saídos da graduação e da especialização!

img_3654
A catedral da cidade e o principal bar da praça num sábado

Dificuldade com serviços e no comércio

A questão do esforço, do dever e do mérito não está latente só na Universidade, pois ela permeia todo o entorno. E ela ganha uma adição cultural da diferenciada preocupação com o próprio bem-estar por parte de funcionários e empreendedores. Assim, poucos se esforçarão além dos limites que estabelecem para si para te atender bem. E, somado ao declínio, essa característica resulta em Mulhouse numa área de comércio e serviços falha sob a ótica de quem vem de uma metrópole que serve bem seus clientes.

Os restaurantes de Mulhouse fecham às 20h30 e não abrem aos domingos. Em muitos lugares não conseguimos comer depois das 13h00. Não existe foco no cliente e nem no lucro, por mais que se tenha demanda. E eu que venho de São Paulo, onde se tem de tudo a qualquer hora do dia, tive um choque e aprendizado também. Imagine então a dificuldade e o exercício interno que foi morar em Mulhouse, na Alsácia, com essa qualidade de serviços.

img_9160
A bela vista de casa: montanhas e a floresta negra

Vida social

Mulhouse é uma cidade extremamente diurna e vagarosa. Por isso, não tem um ritmo incessante de metrópole, como eu estava acostumada. As coisas e as pessoas funcionam das 9h às 18h. Em seguida, todos vão para casa se recolher. Os lugares sempre foram os mesmos e iguais e a vida social acabou ficando, portanto, focada nos amigos de infância. Nem mesmo os parques ficam muito movimentados, o que é totalmente diferente do que ocorre em Paris. Quem nasceu em outros estados ou países e hoje mora lá, como eu, passa então o final de semana fazendo atividades nas cidades maiores vizinhas, onde se tem mais movimento.

As paisagens bucólicas no trajeto da ciclovia EuroVelo6
As paisagens bucólicas no trajeto da ciclovia EuroVelo6

Como é de fato morar em Mulhouse, Alsácia, interior da França

Se é interessante morar em Mulhouse, Alsácia, interior da França? Pode ser ótimo e pode ser péssimo. Tudo depende de como agirá!

O que tiro é uma experiência de vida e uma forma mais ampla e com menos maquiagem para ver o mundo real.

Lado positivo de morar em Mulhouse, Alsácia, interior da França

É excelente morar em frente ao trabalho, incrível almoçar em casa e maravilhoso ter um sistema de transportes que funciona com eficiência e não é lotado. Além disso, é uma delícia fazer exercícios ao ar livre ou caminhando ou andando de bike por uma ciclovia que em 5 km te leva a cidades bucólicas. Destaco, ainda, como é muito diferente ter um canal na esquina de casa em que nadam gansos e patos e muito prático andar 15 minutos e chegar ao trem que te leva a outros lugares. Acho também excelente poder passar o final de semana visitando outras cidades e países e voltar no final da tarde pra casa, rapidinho.

IMG_3890
Pelo interior na ciclovia com a bicicleta do sistema público

Lado negativo de morar em Mulhouse, Alsácia, interior da França

Esses argumentos são excelentes, mas existe o lado ruim de morar em Mulhouse, no interior da Alsácia, França. É complicado ter de ir ao supermercado em horário comercial. Nós cansamos de almoçar em casa todos os dias e queremos opções para quebrar a rotina. E é difícil ter uma vida social pouco ativa.

O que é terrível é ser mulher em uma cidade em que parte da criminalidade está ligada ao estupro e assédio. Há histórico de casos ocorridos por homens de religiões que mantém, em contrapartida, suas mulheres cobertas por véu. Um choque cultural para a França e também para uma brasileira. Algo que todos precisam refletir tanto imigrantes que atuam fora da legislação e da cultura da França quanto os locais. Na França vi mais choque de cultura entre nascidos na França e imigrados que em outras regiões do mundo. É triste, pois senti como é o processo em que podem nascer alguns tipos de xenofobia.

Tour du Belvedère, em Mulhouse
Tour du Belvedère, em Mulhouse

Sim, o declínio de Mulhouse trouxe uma nova força de trabalho que está colidindo com a cultura local. As mulheres que estão sentindo e o governo ainda não descobriu a forma adequada de atuar. Além dos casos de estupro, existem homens que abordam na rua ou olham de uma maneira bem desagradável.

Eu te digo: é muito pior que passar na frente de uma obra no Brasil ou levar cantada de bêbado. A minha solução? Não andar sozinha na rua muito tarde; não usar saia acima do joelho ou short; e não usar calça justa sem ter uma blusa ou casaco cobrindo o bumbum. Manter o olhar reto, fixo e expressão séria quando ando na rua. Ou seja, eu não era assaltada, mas tinha outro tipo de receio com a segurança.

EuroAiport: um aeroporto, três países
EuroAiport: um aeroporto, três países

O que aprendi ao morar no interior da França

Cada lugar tem sua marca e dor. Eu recebi dessa cidade qualidade de vida e de ensino. Não tenho arma na cabeça na rua como vivi em São Paulo um ano antes de mudar. Mas ser mulher em Mulhouse e viver numa cidade pacata – quando se é metropolitana – não é fácil. Eis aí o maior aprendizado dessa minha temporada lá. O que levarei não é essencialmente acadêmico. O que tiro é uma experiência de vida e uma forma mais ampla e com menos maquiagem para ver o mundo real.

É bom viver no exterior? É muito bom e importante. Aprendemos sobre diferentes culturas? E como! Entre morar em São Paulo ou em Paris, eu te digo, contudo, por experiência própria: não tem taaaanta diferença. Para quem nasceu em uma das maiores metrópoles do mundo, o grande aprendizado é outro: é morar no interior.

Agora… de lá fui para a Calábria, na Itália. E depois… para Valencia, onde estou! Curtiu essa experiência? Então assine aqui a newsletter do Ultrapassando Fronteiras e acompanhe nossas experiências e viagens!

Como é morar no interior da França

O que você achou? Teria algum comentário?

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.